Andrei Tarkovski declara guerra à mediocridade

Leandro Costa
Persona
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6 min readApr 22, 2016

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Em 1982, o diretor Andrei Tarkovski estava na Itália produzindo o seu filme Nostalgia. O escritor Tony Mithcell o entrevistou para a revista Sight&Sound. Seguem abaixo alguns trechos traduzidos dessa entrevista:

A relação com o público

O cinema é uma forma de arte que envolve um alto grau de tensão, que geralmente não pode ser compreensível. Não é que eu não queira ser compreendido, mas eu não posso, como Spielberg, por exemplo, fazer um filme para o público geral — eu ficaria mortificado se eu pudesse.

Se você quer atingir um grande público, você tem que fazer filmes como “Star Wars” e “Superman”, os quais não têm nada a ver com a arte. Isso não quer dizer que eu considero o público um bando de idiotas, mas certamente eu não me esforço para agradá-lo.

Não sei por que sou tão defensivo na frente dos jornalistas — eu posso precisar de você por esses dias, especialmente se o meu filme tiver o mesmo tipo de exposição que tem o Angelopoulos!

Andrei Tarkovski entrevista
Tarkovski com o roteirista Tonino Guerra

Influências

O problema da influência, do influxo ou da atividade recíproca é complexo. O cinema não existe num vácuo — você tem colegas e por isso as influências são inevitáveis. Então o que é influência ou influxo? A escolha que o artista faz do ambiente em que ele trabalha, das pessoas com as quais trabalha, é como a escolha que ele faz de um prato num restaurante. Quanto à influência de Kurosawa, Mizoguchi, Bresson, Buñuel, Bergman e Antonioni no meu trabalho, ela não é uma influência no sentido de “imitação” — do meu ponto de vista isso seria impossível uma vez que a imitação não tem nada a ver com os objetivos do cinema.

Você tem que encontrar uma linguagem própria para a expressão de si mesmo. Para mim, influxo significa estar na companhia de pessoas que eu admiro e estimo.

Andrei Tarkovski - Entrevista - Solaris
Durante as filmagens de Solaris

Sem os cineastas que citei, com a adição de Dovzhenko, não haveria nenhum cinema. Todos procuram naturalmente por seu próprio estilo, mas se esses diretores não tivessem propiciado um contexto ou um fundo de experiência, o cinema não seria o mesmo. No momento, muitos cineastas parecem estar passando por um período muito difícil. Na Itália, o cinema é uma dificuldade. Meus colegas italianos — e estou falando de alguns dos nomes mais conhecidos no cinema — contam-me que o cinema italiano deixou de existir. O público de cinema é um dos fatores mais importantes para isso. Por muito tempo o cinema seguiu o gosto do público, mas agora o público não quer ver certo tipo de filme, o que é tanto melhor, na verdade.

Uma profissão quase suicida

duas categorias básicas de diretores de cinema. Uma consiste daqueles que procuram imitar o mundo em que vivem, e a outra daqueles que buscam criar seu próprio mundo. A segunda categoria contém os poetas do cinema: Bresson, Dovzhenko, Mizoguchi, Bergman, Buñuel e Kurosawa, os nomes mais importantes do cinema. O trabalho desses cineastas é de difícil distribuição: ele reflete suas aspirações interiores, e isso sempre vai contra o gosto do público. Isso não quer dizer que os cineastas não querem ser compreendidos pelo seu público. Em vez disso, eles tentam captar e compreender os sentimentos do público.

Apesar da condição atual do cinema, o filme permanece uma forma de arte, e cada forma de arte é específica, com um conteúdo que não corresponde à essência de outras formas. Por exemplo, a fotografia pode ser uma forma de arte, como demonstra o gênio de Cartier-Bresson, mas ela não é comparável à pintura porque ela não está numa competição com a pintura. A questão que os cineastas têm que colocar a si mesmos é: o que distingue o cinema das outras artes? Para mim o cinema é único na sua dimensão do tempo. Isso não significa que ele se desenvolve no tempo — assim como a música, o teatro e o balé. Eu quero dizer o tempo no sentido literal.

O que é um frame, o intervalo entre “Ação” e “Corta”? O filme fixa a realidade numa sensação do tempo — é um modo de conservar o tempo. Nenhuma outra forma de arte pode fixar e parar o tempo como esta. O filme é um mosaico feito de tempo.

Isso envolve reunir elementos. Imagine três ou quatro diretores ou câmeras filmando o mesmo material por uma hora, cada um com sua própria visão particular. O resultado seria três ou quatro tipos diferentes de filme — cada pessoa tiraria alguma coisa e manteria outras e faria seu próprio filme. Apesar da fixação do tempo envolvida no filme, o diretor sempre pode elaborar seu material e expressar sua própria criatividade através dele.

Andrei Tarkovski - Entrevista -
Filmando O Sacrifício

Para fazer um filme você precisa de dinheiro. Para escrever um poema tudo que você precisa é de uma caneta e de um papel. Isso coloca o cinema numa desvantagem. Mas penso que o cinema é invencível, e me curvo a todos os diretores que tentam realizar seus próprios filmes apesar de todas as dificuldades. Todos os filmes de que mostrei exemplos [na conferência de cinema do Centro Palatino de Roma, em 9 de setembro de 1982] têm seu próprio ritmo. (Hoje em dia, ao que parece, a maioria dos diretores usa pequenas cenas rápidas, e os diretores que usam cortes rápidos são considerados “verdadeiros profissionais”).

O objetivo de qualquer diretor genuíno é expressar a verdade, mas com o que se importam os produtores?Nos anos 40, houve uma pesquisa para determinar o ranking de stress de acordo com as profissões. Foi no tempo de Hiroshima e os pilotos ficaram no topo. O segundo lugar foi para os diretores de cinema. É quase uma profissão suicida.

Guerra à mediocridade

Acabei de voltar de Veneza, onde fui jurado no festival, e posso atestar a completa decadência do cinema atual. Veneza foi um espetáculo lamentável. Compreender e aceitar um filme como o Querelle, de Fassbinder, requer, creio eu, um tipo de espiritualidade totalmente diferente. Obviamente Marcel Carné o aceitou mais do que eu. Acho que é uma manifestação de um fenômeno anti-artístico; suas preocupações são problemas sociais e sexuais. Teria sido profundamente injusto ter dado um prêmio ao filme apenas porque ele era o último filme do Fassbinder — penso que ele fez filmes muito melhores que esse. Contudo, a atual crise do cinema não é importante, porque as artes sempre atravessam períodos de crise e então há um renascimento. Só porque você não consegue fazer um filme não significa que o cinema está morto.

Chegamos a um tempo em que devemos declarar guerra aberta à mediocridade, à banalidade e à falta de expressividade, e fazer da pesquisa criativa uma regra no cinema.

Em sua melhor forma, o cinema fica entre a música e a poesia. Ele atingiu um nível tão alto quanto qualquer forma de arte. E foi como uma forma de arte que ele se consolidou. A Aventura, de Antonioni, foi feito há muito tempo, mas dá a impressão de ter sido feito hoje. É um filme milagroso e não envelheceu nem um pouco. Talvez não seja o tipo de filme que se faria hoje em dia, mas ainda mantém aquela vivacidade. Meus colegas italianos estão passando por um período realmente ruim. O Neorrealismo e os grandes diretores parecem ter desaparecido. Os produtores são como traficantes, eles apenas querem fazer dinheiro, mas a maioria deles não dura muito. Quase abri mão da versão de “Solaris” que foi exibida na Itália. Mas agora a companhia que distribuiu o filme não existe mais, o que parece ser o destino da maioria dos distribuidores”.

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