Um exemplo de cinema puro: “Muito riso e muita alegria”, de Peter Bogdanovich

da maturidade estética de Bogdanovich como superação da “Nova Hollywood”

Victor Bruno
Persona

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Em “Muito Riso e Muita Alegria”, a personagem masculina consegue o que quer, e essa conquista é baseada na confiança. Inteiramente. Ninguém “discute” nada nesse filme. (Peter Bogdanovich)

Contra a retórica

Uma verdadeira praga na história do cinema é o filme essencialmente retórico e naturalista. Expediente que é paulatinamente rejeitado pelos grandes artistas, aqueles que sabem que um filme é uma articulação simbólica de situações possíveis — procedimento distinto daquele do filme naturalista e retórico, que acha que a câmera capta o mundo material. (Aliás, algo pouco observado é que retoricismo e naturalismo em arte são sempre sinais de decadência). Pensemos, por exemplo, no tema “medo”. Nessa matéria, Hitchcock é mais realista que a última maravilha retórico-naturalista brasileira sobre o mesmo tema (O Som ao Redor [2013], digamos), porque Hitchcock sabia que a produção artística passa pela estilização imagética e narrativa — que não é nada além do que a articulação do sentimento de maneira intelectualizada (pois a arte e a razão são a mesma coisa: “Ars sine scientia nihil est”). O realismo na arte não é o retrato material do mundo material, mas uma produção racional de uma realidade primordial que se articula no mundo material de diversas maneiras. Por esse motivo, o naturalismo é uma empreitada pecaminosa e impossível.

Infelizmente, por razões diversas, os filmes que são mais apreciados, especialmente no período posterior à década de 1960, são em geral aqueles que mais remetem ao cinema retórico, mesmo quando não o são. Nesse quesito, penso em dois exemplos clássicos: O Franco-Atirador (1978), de Michael Cimino, e A Última Sessão de Cinema (1971), de Peter Bogdanovich, tema de texto recente desta mesma publicação. Bogdanovich e Cimino são cineastas no sentido estrito da palavra, mas que graças ao sucesso estrondoso e a uma certa consonância entre qualquer coisa que haja nesses dois filmes e o espírito da Nova Hollywood da década de 1970 (um dos momentos mais desastrosos da história do cinema, sinto dizer, pois, além de ter aberto as portas para o cinema materialista, também ensejou o blockbuster de verão que corrompe as salas de cinema neste século, coisa que os admiradores dessa fase do cinema, displicentemente, parecem ignorar), graças a essa consonância, dizia, foram confundidos por cineastas retóricos.

Desfeita a confusão (não que ela tenha sido justificada por um segundo: era só ver com atenção O Último Golpe [1974]e Na Mira da Morte [1968]) iniciou-se um processo de expulsão desses dois artistas, Cimino e Bogdanovich, do mundo do cinema. Ficaram marcados pelo que não são, e pelo resto de suas carreiras a crítica exigiria que tornassem a filmar A Última Sessão de Cinema e O Franco-Atirador.

Isso cria um problema formidável para a crítica e para o cineasta, posto que a leitura das suas obras subsequentes seja sempre feita em relação ao que poderíamos chamar de “filme-engano”. Isso fica nítido com Peter Bogdanovich, já que todos os seus filmes são julgados pelo pecado de não serem A Última Sessão de Cinema. Insisto, porém, que por mais qualidades que esse filme tenha, A Última Sessão é, junto com Na Mira da Morte, o filme que menos se parece com um filme de Bogdanovich. Portanto, não pode ser sua melhor obra — esse posto pertence a Muito Riso e Muita Alegria (1981).

Um cineasta verdadeiro

Isso não quer dizer que não haja ali uma semente (como também é o caso de Mira) de temas e interesses que se farão presentes em seu cinema: O medo de perder a juventude; as rugas da velhice; o sexo como prazer, como amizade e como arma; a fraternidade; e, claro, o cinema. Esses temas estão todos ali. Porém todos são declamados de modo livresco pelas personagens: essa é a ontologia sobre a qual se ergue o famoso monólogo de Sam the Lion ao açude e o “I guess if it wasn’t for Sam, I’d have missed it, whatever it is”. Mas, de maneira curiosa, as melhores cenas são aquelas que são mais cinematográficas, com a propriedade da imagem, e não da declamação. Dessas, assinalo duas: a morte de Billy e o “Never you mind” do final. Aí está a verdadeira carga intelectual e simbólica do filme. Contudo, como o Sessão se articula sobre a declamação retórica, explicitando sobre o que ele é (i.e., seu Grande Tema), fica-se com a impressão de que o que torna o filme bom é esse instinto retórico, que é a maior estampa da ansiedade do início da carreira de seu autor.

Bogdanovich na década de 70

Não seria até Daisy Miller (1974) que Bogdanovich conseguiria filmar uma obra falando de algo sem precisar da muleta retórica ou da ebulição cinéfila (ainda que aqui tenhamos uma emulação explícita de Jean Renoir e Ernst Lubitsch). Todavia, é precisamente nesse momento, quando Bogdanovich vira alguém que consegue converter uma ideia numa simbolização dramática sem precisar recorrer à explicitação do tema, é esse o momento em que rejeitam-no. Daisy Miller compartilha com Sessão de certa verbosidade (talvez empregada em nível experimental: há cenas com 10, 15 páginas de texto, lidas velozmente, em longos planos-seqüência); talvez haja, sim, essa verbosidade, mas o diretor jamais precisa dizer ao seu espectador do que o filme se trata. Não surpreende que sua próxima obra seja um musical (Amor, Eterno Amor [1975]) que subverte esse artifício de maneira brilhante: as personagens principais não conseguem se comunicar naturalmente, precisando do ornamento musical para poder dialogar. Sem dizer isso explicitamente, Bogdanovich lança mão da arte para intelectualizar uma possibilidade de dinâmica humana — e isso é o verdadeiro realismo.

Quando chegamos a Muito Riso e Muito Alegria (doravante, They All Laughed), já temos um cineasta absolutamente ciente de si, das suas capacidades e dos seus interesses enquanto artista. Em outras palavras, temos um cineasta maduro, que não precisa mais fazer uma comédia screwball para dizer que gosta de Howard Hawks (Essa Pequena É uma Parada [1972]), nem de explorar a Grande Depressão para exibir suas inclinações fordianas e sturgianas (Lua de Papel [1973]), ou, de novo, filmar no Continente para dizer que aprecia Lubitsch (Daisy Miller). Em Laughed, temos um cineasta livre e apaixonado — tanto por uma das suas estrelas (namorava Dorothy Stratten) quanto pelo seu ofício. (Curiosamente, Scorsese, o outro cineasta de formação cinéfila da Nova Hollywood, jamais passou por esse processo de amadurecimento e transcendência duma certa ansiedade de mostrar o seu conhecimento da história do cinema. Ainda que, em geral, o público e a crítica não tenham percebido isso). Nesse sentido, Bogdanovich é um artista no sentido mais tradicional do termo: um artista que sabe trabalhar com o molde intelectual do ser sem precisar se entregar à naturalidade iconográfica ou narrativa; tendo dominado as técnicas dos mestres do ofício (que também não se entregavam a essas naturalidades pouco essenciais ao fazer artístico), sua arte nos inspira aos patamares mais altos da existência. (Há quem estranhe que Saint Jack [1979] mostre um cafetão subitamente tomado por um surto de virtude. “Isso não é realista!” dizem. Convém a esses ler a última sentença). Estou tão persuadido de que isso é verdadeiro que não me surpreendi quando vi Bogdanovich afirmar que não poderia ter filmado Laughed (ou Mask [1985]) ao começar a carreira.[1]

“Mostrar”, e não “dizer”

They All Laughed é um filme que exige saber pensar e saber olhar; exige uma ginástica (no sentido platônico do termo) do espectador — um ato contemplativo e intelectualmente ativo. É cinema puro, que ilustra seus interesses antes de explicitá-los. Poucas coisas já filmadas são tão convincentes e tão belas quanto o último baile no bar country, no qual todos os pares enfim ficam juntos; a alegria do momento impregna a própria câmera, e Bogdanovich pode se limitar a filmar a alegria dos seus atores sem nenhum tipo de restrição. E quando a técnica é necessária, como na cena em que, na perspectiva de John Ritter, vemos Dorothy Stratten se aproximar e “baixamos” a vista num movimento vertical, mesmo nesses momentos não temos mais a impressão de que se trata de um wonder boy citando Hitchcock: por mais evidente que seja que esse movimento de câmera é uma citação d’O Homem Errado (1956), esse movimento agora é dele, de Bogdanovich. É o mesmo processo do sábio que, depois de ter adquirido e entendido os ensinamentos do seu mestre, se apropria deles, dando-lhe honra e levando-os adiante.

John Ritter e Dorothy Stratten em “Muito riso e muita alegria

O cinema, assim como todas as outras artes (não apenas as “sete”, soma criminosa feita pela onda esteticista burguesa do século passado, mas todas as artes da existência), é uma simbolização do Real que exige um esforço verdadeiro do espectador. A Última Sessão de Cinema, Lua de Papel e outros filmes de Bogdanovich do seu período “aceito”, têm suas qualidades. Porém, a riqueza do cinema e da vida está mais perfeitamente desenhada em They All Laughed.

  1. “Quanto mais se filma, mais fácil fica para a técnica vir. Não poderia filmar Mask ou They All Laughed ao começar a minha carreira; essas são obras muito difíceis.” (Bogdanovich em entrevista a Thomas J. Harris, em Peter Tonguette, org., Peter Bogdanovich: Interviews, Jackson, University of Mississippi Press, 2015, p. 105).

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