À margem de si mesmo: “Réquiem para um sonho”, de Darren Aronofsky

um filme visceral sobre as possibilidades do sofrimento humano

Leandro Costa
Persona

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Réquiem para um sonho é uma ilustração vertiginosa do desespero humano. Uma imersão visceral nas possibilidades do sofrimento. Baseado no livro homônimo de Hubert Selby Jr., o filme de Aronofsky conseguiu reproduzir fielmente a claustrofobia espiritual presente na obra do escritor.

O melhor projeto do diretor seria O Lutador, filme de exceção em sua obra. Mas em Réquiem para um sonho houve uma feliz conjunção de fatores que o transformaram em um dos filmes mais impactantes do cinema recente. Um tanto quanto retórico, talvez, mas sincero e, como requereria a literatura de Selby Jr., com um olhar genuíno para as personagens.

“Ser uma família exemplar”, “empreender no mundo da moda” e “dar orgulho para a mãe”, as aspirações perdidas das personagens de Réquiem para um sonho.

Aqui não há, como nos filmes posteriores, as tentativas gnósticas de generalização do cosmos [1], mas a observação atenta de um drama bastante humano. A trama apresenta três jovens que, seduzidos pelas promessas vazias do dinheiro fácil e do vício nas drogas, mergulham em um abismo de sofrimento que os faz abandonar seus ideias e lhes imprime marcas permanentes em seus espíritos. Paralelamente, é a história de uma senhora que troca sua sanidade mental por um fetiche, motivo pelo qual também fica viciada em drogas.

As estações da angústia

Em Réquiem para um sonho, a estrutura clássica da divisão do roteiro em três atos segue a sucessão das estações climáticas do ano. Sem a primavera. Assim, o ciclo de nascimento, formação, maturidade e declínio não se completa, pois o objetivo não é o de mostrar uma experiência redentora, mas uma experiência na qual os níveis de angústia dos indivíduos vão se aprofundando de maneira gradativa. A trama inicia no verão e termina no inverno, seguindo o movimento das motivações das personagens: esperança, decadência e desespero. A primavera traria a possibilidade do renascimento e aí o efeito do filme seria outro.

Ao contrário disso, desde o início é feita a opção pelo grotesco. E é aí que reside a sua retórica. Retórica a que servem todos os recursos da linguagem cinematográfica de Aronofsky: a montagem que, em conjunto com a trilha sonora de Clint Mansell, confere um estilo de videoclipe a vários momentos da narrativa; a fotografia em tons crus e evanescentes, que dá a ideia de que os lugares em que as personagens vivem são predominantemente feios; as distorções de lente empregadas para aprofundar o ponto de vista subjetivo das personagens; e a ênfase na humilhação e na deterioração física das mesmas, na criação proposital de imagens desagradáveis.

A degradação física de Sara Goldfarb, em atuação brilhante de Ellen Burstyn

No entanto, se o seu excesso de retórica pode ser considerado um ponto negativo, pode-se alegar em favor do filme a coerência do seu conjunto de intenções:

Em nenhum momento Aronofsky e Selby Jr. pretenderam pintar a experiência do vício nas drogas como algo bom e louvável. O que eles pretenderam foi mostrar as consequências terríveis dessa experiência.

O fato de Réquiem ter sido escrito pelo próprio Selby Jr. demonstra que ele está alinhado com o projeto artístico do escritor (um dos mais importantes da literatura americana moderna).

Nesse caso específico, o objetivo é o de expressar a dialética entre o eu ideal e o eu concreto. Portanto, a grande qualidade do filme é a comparação entre as possibilidades ideias da existência e as escolhas concretas que os indivíduos fazem durante a vida. E é por isso que o seu conteúdo humano transcende a sua linguagem explicitamente retórica. [2]

Réquiem para o “eu” perdido

A narrativa completa do filme funciona como o retrato de Dorian Gray: é a expressão material da degradação moral dos indivíduos. E aí, mais do que um filme anti-drogas, Réquiem para um sonho é uma expressão do abandono dos ideais. [3]

Há aqui a descrição de um vazio existencial sentido pelos jovens. Vazio que, em vez de ser preenchido por alguma fonte de responsabilidade, é preenchido pelas drogas. Selby Jr. estava preocupado com a alienação total da personalidade; com uma mentalidade que faz com que pessoas transformem-se em coisas sem muito valor; com vidas vividas completamente à margem dos ideais e dos valores que poderiam orientá-las.

São poucos os momentos do filme em que vislumbramos o horizonte perdido de Marion Silver e Harry Goldfarb (personagens de Jennifer Connelly e Jared Leto, respectivamente). E são escassos justamente pelo fato de esses momentos estarem se apagando de suas consciências.

O horizonte perdido de Harry Goldfarb: o pai, o marido, ou simplesmente o amigo que ele poderia ter sido, todos esses destinos se apagam quando Harry abdica do amor ao próximo e transforma Marion num objeto de satisfação do seu vício.

Selby Jr. quis retratar uma circunstância na qual os homens vão perdendo, gradativamente, a sua capacidade de amar. Na qual o espaço da alma reservado ao amor ao próximo é preenchido pela satisfação gratuita de desejos puramente materialistas.

Ele queria dizer que, intuitivamente, todos nós sabemos qual é a nossa missão dentro da vida. Mas há uma força demoníaca que nos faz abandonar nossos propósitos e esquecer quem realmente somos:

“Acho que todos nós temos um sonho individual — nossa visão pessoal e particular, nosso modo próprio de doar-se; porém, por muitos motivos temos medo de persegui-la, ou até mesmo de reconhecer e de aceitar a sua existência. Contudo, negar nossa visão é vender a nossa alma. A vida sem caridade é uma mentira, é virar as costas para a verdade. E as Visões que temos são lampejos da verdade: é óbvio que nenhuma coisa externa pode alimentar verdadeiramente a minha vida interior, a minha Visão.”

A recusa dessa Visão, desse sonho individual, imiscui as personagens em uma realidade feita exclusivamente de “coisas externas”. Como não há transcendência, não é mais possível enxergar o eu ideal do futuro, nem enxergar as outras pessoas como indivíduos que também possuem suas próprias visões. Então vive-se uma vida de mentira (a vida sem caridade), à margem de si mesmos, distantes da vocação propriamente humana que é a vocação do amor ao próximo.

Porém, à maneira de um narrador de Dostoiévski, o final do filme lança um olhar compassivo sobre essas personagens: todas elas assumem, novamente, a posição fetal, a condição primeira de quando vieram ao mundo; todas elas convergem para a essência de cristal que constitui a sua humanidade. É uma justificativa: Depois de sequências bastante desconfortáveis para o espectador, é como se os autores estivessem nos dizendo: “gostaríamos de ter contado outra história, mas a realidade nos obrigou a contar esta. Essa dor é real e inesquecível”. Assim como o são os violinos do Kronos Quartet tocando a Lux Aeterna de Clint Mansell.

Notas:

[1] Para entender as pretensões de Aronofsky de criar um cânone gnóstico, cf. o ensaio de Fabrício de Moraes publicado na revista Amálgama.

[2] Em ensaio recente para o Persona, o nosso colaborador Victor Bruno explicita a diferença entre o cinema retórico e o cinema genuíno, baseado em um conteúdo humano arquetípico. Nessa classificação, Réquiem para um sonho seria essencialmente retórico. Porém, meu argumento aqui é o de que, ao seguir a premissa fundamental da obra de Selby Jr., a adaptação cinematográfica de Aronofsky conseguira expressar com felicidade as preocupações estéticas do escritor, as quais estão muito acima de uma expressão puramente retórica.

[3] Muitos criticam o filme pelo fato de o diretor ter mobilizado, paralela à produção do filme, uma pesada campanha contra as drogas. Mas essa foi apenas uma consequência do processo artístico, e não a intenção principal do projeto.

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